Vivemos tempos excepcionais. De um momento para o outro vimo-nos obrigados a tomar uma série de medidas preventivas que nos baralham as rotinas, nos obrigam a reajustar o nosso modo de vida e a coabitar com a ansiedade espoletada pelo medo e pela incerteza.

Apesar dos desafios da pandemia em termos de saúde e da severidade dos seus impactos económicos, sociais, políticos e culturais, é importante atentar à forma como as desigualdades estruturais pré-existentes se reconfiguram e agravam nas actuais circunstâncias da sociedade. Para além das discrepâncias com base na classe social, sabemos que mesmo dentro dos grupos mais afectados se verificam diferenças com base no género.

Estes impactos transcendem a esfera da saúde e ramificam-se para as restantes áreas da vida das mulheres, acarretando efeitos relevantes ao nível da sua saúde física e psicológica, segurança e autonomia.

As estatísticas do Pordata revelam a crescente feminização dos cuidados de saúde em Portugal. Há mais médicas, enfermeiras, farmacêuticas, auxiliares de acção médica e, por esse motivo, não é redutor afirmar que são as mulheres que estão na linha da frente da batalha contra a pandemia de covid-19. Adicionalmente, a grande maioria das cuidadoras e profissionais em contexto comunitário (em lares de idosos/as, instituições de acolhimento, apoio a sem-abrigo) são também mulheres.

Estas profissionais acabam por ser expostas a um maior nível de stress na gestão do aumento da pressão laboral, protecção individual e conciliação com o cuidado à família.

No entanto, apesar de termos duas figuras femininas na linha da frente governamental (Ministra da Saúde e directora-geral da Saúde), não deixa de ser paradoxal que continuem a ser, maioritariamente, homens os especialistas chamados a pronunciar-se sobre os temas relacionados com o vírus e suas consequências

As medidas de isolamento social, implementadas para minimizar as taxas de infecção, têm também consequências importantes na vida quotidiana das mulheres. A conciliação entre o trabalho e a vida familiar sempre foi uma área de desigualdade entre homens e mulheres. Em isolamento social, estas diferenças acentuam-se. Muitas mulheres vêem-se obrigadas a ser produtivas em regime de teletrabalho, a cuidar dos seus filhos, a apoiar actividades lúdicas ou outras e a gerir tarefas domésticas. Esta transposição das actividades laborais com as actividades domésticas e familiares traduzem-se num maior défice de tempo livre, sobrecarga física e mental e limitam a sua autonomia e oportunidades económicas. A este nível importa relembrar as palavras de Silvia Federici relativamente ao trabalho reprodutivo: “Aquilo a que chamam amor, nós chamamos trabalho não remunerado”.